Ilhados tratado sobre guris

10 Aquele padre atendia havia anos aquela escola e quase que se acostumara ao escárnio dos meninos, mas, naquele dia, seu rosto escaveirado mostrava que ele não estava para brincadeiras. Quando o padre passava rápido pela clareira que se abrira entre os estudantes maiores, eu pude ver o caixão de madeira sobre o es- trado de metal e as coroas de flores lá no meio do salão. O choro da mulher explodiu então em brados histéricos. Minutos depois, quando ela se calou, escutamos a voz do padre, anasalada, fanhosa, recitando orações em latim. Como os bedéis estavam espalhados pelo meio dos veteranos, nós, os novatos mais curiosos, tomamos coragem e subimos para os bebedouros. Dali a gente podia ver o centro do salão. De longe, me pareceu que o rosto do guri deitado no caixão estava meio arroxeado. Já as mãos, cruzadas diante do peito, eram bem amareladas. Da cintura para baixo, o corpo estava coberto com a ban- deira branca e azul da escola. Debruçada junto ao caixão, localizei a mulher que chorava. Com a cabeça coberta por uma mantilha negra, ela apertava um lenço branco contra a boca. Por trás dela, rodando um boné nas mãos, estava um homem pálido, com a barba por fazer. Ele parecia incomodado de estar ali, louco para ir embora. Num movimento brusco, a mulher ergueu o rosto. A mantilha deslizou-lhe pelos cabelos negros. Ela encarou o crucifixo e, em voz alta, quis saber de Deus por que, naquele mar de guris, ele havia es- colhido justamente o filho dela para levar embora. Assustado, o padre fechou o livro. Senti que não tinha o direito de presenciar aquela cena. Saltei da bancada de mármore do bebedouro para o chão, voltei para o meio dos novatos e fiquei escutando o que os garotos murmuravam: — Era da terceira série. — De bicicleta. — Depois da aula, ontem de tarde. — Um carro acelerado... Naquele dia não houve crisma. Nem na quarta-feira. Mas na quinta-feira, porque éramos jovens, e a morte era algo improvável e distante, os veteranos nos arrastaram para o campo de futebol.